Livro: O movimento hippie passou pela minha cozinha

Às vezes, pessoas com quem convivo me perguntam se eu fui hippie. Eu fico me questionando: fui? Não fui? Bem, eu não botei a mochila nas costas e fui para as estradas, como os hippies faziam, nem sentei em praças a fazer artesanato, nem vivi em fazendas comunitárias - na verdade, em todo o tempo em que as coisas estavam acontecendo, eu continuei a levar uma vida de pequeno-burguesa, em Blumenau, primeiro estudando, depois trabalhando e estudando, e sei que o meu pai jamais deixaria que eu botasse a mochila nas costas e saísse pelo mundo.
Por outro lado, eu estava ligadíssima em tudo o que acontecia: era adolescente quando chegaram as primeiras notícias sobre o movimento hippie, e quase fiquei adulta antes que ele terminasse. Minhas antenas estavam todas voltadas para aqueles jovens que estavam botando em xeque todos os valores pré-estabelecidos, que estavam derrubando tabus e preconceitos, e tudo o que eu queria na vida era ser como eles. Na verdade, absorvi ao máximo a filosofia hippie, e quando me perguntam se fui "hippie" ou não, acabo pensando cá comigo: "De uma certa forma, eu sou hippie até hoje!".
Daí, um dia, logo depois de 1970, o movimento hippie chegou em Blumenau. Os hippies tinham rotas pré-estabelecidas: do Rio desciam para a Ilha do Mel/PR, e de lá a Florianópolis, enveredando para o Rio Grande do Sul e para a Argentina, e depois iam conhecer mais coisas da América do Sul, e acabavam voltando ao Brasil via Bolívia. Em algum momento, no começo da década de setenta, eles colocaram Blumenau nessa rota, e foi lindo!
Eles chegavam sem pressa a Blumenau, e hospedavam-se num hotelzinho da rua Ângelo Dias, e passavam os dias na escadaria da Igreja Matriz, fazendo os mais diferentes tipos de artesanato, e tocando violão, e compondo poemas, e filosofando e se curtindo, e eu daria um braço para poder ficar lá com eles - só que, pequeno-burguesa que era, tinha que ir trabalhar.
Nos finais de tarde, porém, parava diante da escadaria da Igreja, e ficava de papo com eles. Surgiram amizades daí, e os hippies começaram a ir lá em casa jantar. Meus pais tinham se mudado para a praia, e eu e minha irmã Margaret morávamos num "apertamento" na rua 15 de Novembro, a principal de Blumenau. Com certeza, se morássemos, ainda, com nossos pais, as coisas teriam sido diferentes, mas em pleno movimento hippie blumenauense, Margaret e eu estávamos morando sozinhas - uma maravilha!
Nosso "apertamento" virou ponto de jantar de muitos hippies, porque eles estavam sempre indo ou chegando de algum outro lugar, e as amizades não duravam muito tempo. Estávamos, naquele tempo, num período de baixíssima inflação, e tínhamos bons salários, o que resultava em esmerados jantares feitos de camarão e outras coisas boas.
Nossos amigos andavam sempre meio esfomeados, e era um prazer cozinhar para eles. Nós entrávamos com a comida, e eles entravam com as histórias, e quantas histórias tinham para contar! A maioria deles tinha viajado muito, e contavam para nós as coisas do Brasil e da América, e alguns tinham viajado inclusive pela Europa, e era um nunca acabar de contar coisas. Discutíamos música e coisas filosóficas, falávamos mal da guerra do Vietnã e dos preconceitos da sociedade - eram noites estimulantíssimas!
Naquele tempo, porém, se dormia cedo. Meia noite era uma hora tardia, e era por essa hora que eu anunciava:
- Gente, hora de dormir! ­ e nossos amigos se despediam e iam escada abaixo, mas quantas coisas e quantas experiências nos deixavam! Quantas coisas, na minha vida de hoje, ainda são influenciadas por aqueles papos e por aquele tempo! Eram doces amigos que se foram, e que abriram, para nós, novas janelas para olhar o mundo. Nunca tivemos nenhuma queixa deles: sempre foram educados e gentis, sequer alguma vez acenderam um baseado na nossa cozinha. E como os mais velhos falavam mal deles! Acho que fui uma felizarda pelo contato com eles. E afirmo, hoje, com orgulho, que o movimento hippie passou pela minha cozinha!

Urda Alice Klueger